Motoclubes 1% – Como Surgiram
Conheça a origem dos motoclubes fora da lei. Por que eles são chamados de 1% e qual a sua importância na história do motoclismo mundial.
A história dos motoclubes fora-da-lei pode ser dividida em duas partes.
A primeira vai da metade dos anos 40 até metade dos anos 60 do século passado. Foi quando surgiu a expressão “1%” e apesar de alguns excessos cometidos, se refere ao espírito rebelde e à busca por liberdade dos motociclistas daquela época. Essa foi a era romântica.
A segunda parte vai de meados dos anos 60 até o início dos anos 2000 e não tem nada de romântica. Os motoclubes que permaneceram como fora-da-lei se transformaram em gangues violentas e se envolveram em diversos tipos de atividades ilegais e lutas entre si para manter os seus territórios.
Eles são uma sub cultura do motociclismo, surgiram com um conjunto de ideais que pretendia celebrar a liberdade, a não conformidade com a cultura dominante e a lealdade ao próprio grupo.
Nos Estados Unidos esse motoclubes eram considerados por alguns como fora-da-lei não necessariamente porque se envolviam em atividades criminosas, mas por que não eram associados à AMA, por não atenderem às exigências da associação. Então criaram os seus próprios regulamentos, e estabeleceram as suas próprias culturas.
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos os via como gangues de motociclistas foras-da-lei e diziam que eram organizações cujos membros usavam os motociclistas como canais para empreendimentos criminosos, e que eles eram uma grave ameaça interna.
Alguns deles vieram a se tornar isso mesmo, mas foram chamados de motoclubes “1%” porque um grupo de motociclistas fez uma arruaça em uma pequena cidade nos anos 40 e houve uma divulgação distorcida do fato pela mídia.
E essa história nós vamos conhecer neste artigo.
A AMA – American Motorcyclist Association
A AMA é a Associação dos Motociclistas Americanos, uma organização sem fins lucrativos fundada em 1924 que organiza todas as corridas amadoras de moto nos EUA. Atualmente tem mais de 1.100 motoclubes associados e mais de 200.000 membros.
Sanciona mais de 1.000 eventos por ano voltados exclusivamente para esses motoclubes associados nas categorias de motocross, off road e race track, e mantém um rigoroso Código de Conduta que até os anos 50 não permitia sequer a entrada de afro-americanos da organização.
Já nos anos 40 esse rigor desagradava boa parte dos motoclubes. A alguns porque queriam ter seus próprios regulamentos, que refletissem a sua própria cultura. A outros porque não concordavam com a discriminação racial. E havia também aqueles que eram vítimas dessa mesma discriminação.
Por isso eles não se associavam à AMA, mantendo uma existência independente. Mas isso não os impedia de tentar participar das corridas de moto promovidas pela associação, o que nunca era permitido.
E foi em um desses eventos de corrida que surgiu a expressão “1%”.
Tudo Começou em Hollister
Hollister é uma pacata cidade do interior da Califórnia que atualmente tem pouco mais de 50 mil habitantes e sua economia é baseada na agricultura.
Mas nos anos 40 tinha apenas 4.500 habitantes e era famosa com sediar no feriado de 4 de Julho uma gincana de eventos que envolvia muitas atividades sociais e corridas de moto, sancionadas pela AMA.
Durante os anos a 30 festa aconteceu regularmente, era muito esperada pelo comércio local e se tornou um dos melhores eventos para motociclistas nos Estados Unidos. Mas no início dos anos 40, por causa da Segunda Guerra Mundial o evento foi pausado, para ressurgir em 1947.
Eram esperados pouco mais de 1.000 competidores mas apareceram de uma só vez 4.000 motociclistas, dos quais centenas eram mulheres que também pilotavam.
A cidade estava despreparada para receber tanta gente e entrou em colapso. Não havia hospedagens, bares, restaurantes, banheiros e nem polícia suficiente. Boa parte dos motociclistas pertencia a motoclubes não associados à AMA, que se por um lado podia proibi-los de participar dos competições, não havia como impedi-los de participar do evento na cidade.
O resultado não poderia ter sido diferente: muita bebedeira, brigas, quebradeiras, gente espalhada pelas calçadas, sem banheiro, sem ter onde comer e sem ter onde dormir.
Isso já seria confusão suficiente mas aí aconteceu o inesperado: motociclistas associados ou não a AMA resolveram apostar corridas pelas ruas da cidade! E assim estava instaurado o caos naquele fim de semana.
Apesar de não ter havido nenhum incidente mais grave além de prejuízos materiais e uma enorme quantidade de garrafas quebradas pelas ruas, a imprensa preconceituosa e sensacionalista exagerou e disse que os motociclistas fizeram um “verdadeiro cerco à cidade deixando os pacatos cidadãos aterrorizados“.
Essa reportagem da revista Life repercutiu nacionalmente e a AMA foi correndo se justificar na mídia dizendo que “99 % dos motoclubes associados a ela respeitavam a lei“.
A declaração sou ridícula e caiu na boca do povo. Os motoclubes que não se curvavam às regras da AMA daí por diante assumiram que faziam parte dos “1%” fora-da-lei mesmo e que tinham muito orgulho disso.
E foi assim que surgiram os motoclubes chamados de “1%”.
Apoio e Perseguição aos Motoclubes
Em paralelo o movimento recebeu um reforço de peso na medida em que milhares de soldados que retornavam da Guerra do Vietnã eram humilhados por parte da população que na época era influenciada pela mídia. Após terem cumprido o seu dever para com seu país, eram cuspidos e xingados nos aeroportos e até recusados empregos.
Na época eles estavam criando os seus próprios motoclubes com suas próprias regras e não quiseram se associar a AMA. Esses tipos de motoclubes ficaram muito populares e foram criados aos montes nos Estados Unidos.
Mas as coisas iriam piorar para eles. Em 1964 a pressão do governo aumentou: dois membros do Hells Angels foram presos acusados de estupro e liberados depois por insuficiência de provas.
Ainda assim o governo da Califórnia continuou a investigação sobre os motoclubes foras-da-lei e um ano depois foi divulgado um relatório dizendo que eles eram um perigo para a comunidade e que provavelmente cometiam crimes como sedução de jovens inocentes, estupro e pilhagem em pequenas cidades.
Esse relatório foi amplamente contestado mas serviu para que a imprensa sensacionalista conseguisse um novo jeito para vender os seus velhos jornais e ela passou a publicar com frequência artigos sobre o lado negro dessas organizações.
Isso acabou formando na opinião pública um sentimento de repulsa pelos motociclistas e essa situação perdurou até que a Honda, precisando vender suas motos no mercado americano, lançou uma campanha de agressiva baseada na cultura, convencendo os americanos que alguém com cara de “good boy” devia pilotar uma moto japonesa.
Embora tenha ocorrido um alivio na pressão sobre os motoclubes, foi só nos anos 70, conhecidos como a época romântica do motociclismo, impulsionada por filmes com Easy Rider, que a imagem dos motociclistas foi finalmente resgatada junto à opinião pública americana.
A Hieraquia dos Motoclubes
A influência dos militares na formação dos motoclubes foi tão forte que até hoje muitos deles mantém hierarquia semelhante.
A primeira coisa que você precisa entender sobre os membros desses motoclubes é que eles possuem enorme orgulho de fazer parte deles. É como uma família, um compromisso para toda a vida.
Entrar não é fácil, você não bate na porta deles e pede para fazer parte. Há um longo processo e você primeiro precisa ser convidado para poder andar com os caras. Para fazer parte de um motoclube é preciso passar pelas seguintes etapas:
1– Friends: São pessoas que fizeram algum tipo de contato formal ou informal com o motoclube por meio de amizade ou conhecimento de um membro titular mas que não anunciaram a sua intenção de se afiliar. Podem até participar de passeios ou de alguma atividade na sede mas não podem usar as cores do motoclube.
2 – Hangs: Ou Hangaround, são pessoas que declararam sua intenção de entrar no motoclube mas ainda não anunciaram formalmente o seu desejo ou simplesmente não foram apresentados ao motoclube para votação sobre sua admissão. É nessa fase que a pessoa avalia o motoclube e decide se quer ou não entrar. Eles também não podem usar as cores do motoclube.
3 – Prospect: É alguém que declarou a intenção clara de entrar no motoclube, tem o patrocínio de integrantes titulares e recebeu a votação necessária. Sua vida não é fácil, como os recrutas de um exército, eles são treinados e moldados antes de se tornarem soldados.
Eles podem ganhar um colete com apenas uma parte do escudo e precisam ficar à disposição 24 horas por dia e sete dias por semana para qualquer coisa que sejam chamados.
Ficam com as tarefas mais difíceis como limpar a sede e cuidar das motos dos membros, mas alguns passam por coisas bem piores.
Eles têm que provar que merecem a confiança do motoclube e esse período não tem prazo para acabar. Pode durar meses ou anos até que o grupo decida que o Prospect merece fazer parte do motoclube. Se for aceito ele vai virar um membro efetivo.
4 – Membro: É alguém que foi aceito no motoclube após passar pela formação de Prospect e ter recebido a maioria dos votos dos membros no capítulo ao qual ele pertence.
Essa pessoa demonstrou está alinhada com os princípios, a filosofia e o regimento interno do motoclube. Como membro passa a ter a privilégio de votar e está autorizado a usar as cores completas no Motoclube.
Normalmente os níveis hierárquicos em nível nacional são Presidente, Vice-Pesidente, Secretário e Tesoureiro. Esses níveis podem se repetir nos Capítulos que são sempre subordinados ao Comando Nacional.
Mas motoclubes “1%” podem ter funções a mais: o The Bridge, por exemplo, tem um Sargento de Armas em cada um dos seus capítulos.
Motoclubes “1%” ainda existem?
Com o passar das décadas alguns motoclubes “1%” se tornaram violentos, com histórico de ocorrências criminais que envolvem extorsão, tráfico de substâncias ilegais e até crimes contra a vida.
É um grande erro achar que esses motoclubes não existem mais e que eles são coisas de filme. Essa percepção se deve ao fato de que muitos se tornaram extremamente discretos, e o silêncio é fundamental para a sua sobrevivência principalmente após anos de perseguições pelos Departamentos de Justiça dos países em que atuam.
Como nos Estados Unidos as motos são muito acessíveis nunca faltou motociclista disposto ingressar neles e graças a sua longa história e tradição esses motoclubes tiveram tempo para se aperfeiçoar e angariar novos membros.
Veja quem são os principais motoclubes fora-d
a-lei em atividade no mundo.
Já no Brasil a criação dos nossos próprios motoclubes “1%” foi bem diferente: começaram a surgir com força nos anos 70 e o processo de crescimento deles foi muito mais lento já que aqui as motos custam muito mais caro para população.
Além disso não temos a natureza belicosa dos americanos, como latinos somos mais amigáveis e não temos a cultura preconceituosa deles.
Na América do Sul tem as “mesas” que certificam quem é “1%” de verdade. Por aqui somos mais fechados, menos numerosos, resolvemos entre nós mesmos os nossos problemas e nem de longe fazemos tudo que os americanos fazem.
É claro que existem rivalidades e algumas rixas, afinal ninguém gosta de levar desaforo para casa, mas é a velha história: quem souber respeitar será respeitado.